Thursday, March 17, 2011

Eles vão ver



DANÇA SEM MEDO

Tropicália é um tipo de mapa. É um mapa do Rio e é um mapa da minha imaginação. É um mapa no qual você entra”.
Hélio Oiticica

Entorpecido com a repetição de imagens de homens carregando armas, veículos incendiados, crianças com uniforme de escola e rosto assustado correndo pelas calçadas desiguais da periferia, pensei no medo que vai construindo uma outra arquitetura ao nosso redor. Uma cidade com muitas paredes e sem janelas. E então lembrei do “Eles vão ver”.

O espetáculo do Gustavo Ciríaco e Lucia Russo é suave e destemido como um samurai zen de Akira Kurosawa. É construído como uma sucessão de quadros de composição meticulosa, mas sem a costura de uma narrativa ou coreografia. O foco parece estar nas sensações, cores, sons, cheiros, texturas, memórias, que nos atingem por todos os lados. É uma espécie de tanque de imersão que embala e excita. Uma clareira numa floresta tropical.

A floresta é criada com uma dúzia de arbustos em vasos, sons de animais e de chuva, ventiladores, uma luz delicada que mostra sem revelar. Nessa arquitetura sensorial, vemos pessoas que repousam, observam, conversam, se procuram e perdem em jogos quase infantis. Elas caminham com olhos abertos e curiosos, de quem não conhece e não teme. A cena parece se estender para além das coxias, como se aquela caixa preta brotasse no meio do mato.

Na cena de abertura, o palco está escuro, distinguimos apenas vultos que se movem e pares de pontos de luz, como olhos de animais que nos observam enquanto os observamos. Olhos que logo se desprendem em vôos de vagalume, espalhando cheiro de incenso. Sem ser doméstico, este lugar parece dizer que o desconhecido não é ameaçador, que estes seres podem ser tão curiosos sobre nós quanto nós sobre eles (mais tarde, esta impressão retorna, na cena em que um homem nu nos espia, tímido, semi-oculto pelas plantas).

Quando a luz aumenta já não há animais mas um grupo de pessoas deitadas relaxadamente, conversando baixinho até adormecerem. A sensação é de entrar em um mundo onírico, um “Sonhos de uma noite de verão” em que nada é apenas o que aparenta. Uma ereção durante o sono se transforma em uma comprida mangueira que emerge das calças de um dos rapazes, serpenteia pelo chão e acaba por expelir golfadas de um líquido verde. É uma realidade mágica.

Há magia até mesmo no trivial: semi-iluminados por um facho de luz que sai da coxia, o grupo joga bola preguiçosamente, entrando e saindo da penumbra. Lembrei de quando era criança, quando jogávamos bola na praça em frente de casa por horas. O dia caía aos poucos e nem percebíamos que a escuridão era quase completa, mal víamos uns aos outros. E ainda assim continuávamos jogando. Jogar era uma volúpia. É uma cena que parece vir de outro tempo, ou de outro lugar.

São cenas contemplativas, mas que ao mesmo tempo parecem convidar o espectador a abandonar o ponto de vista externo e entrar naquele espaço. Penso dos Penetráveis de Hélio Oiticica, obras feitas com madeira, panos, areia, plantas, sons e imagens para serem habitadas pelos espectadores. Obras com nomes como “Tropicália”, “Éden” e “Ninhos”. Com elas, Oiticica propunha não apenas outra maneira de apreciar arte, mas outras maneiras de estar no mundo e se relacionar. “Eles vão ver” vai se abrindo sobre si mesmo como um desses labirintos sensíveis.

À cada cena, caleidoscopicamente, a luz propõe uma outra perspectiva do lugar e das pessoas. Os elementos sensoriais, a tessitura delicada da composição de ações e a maneira de espalhar as informações na própria ambientação atraem para junto e para dentro. Como em “Éden”, um penetrável envolto em sacos, onde se entra engatinhando e se deita. Este espetáculo parece que pede ao espectador exatamente isso: que engatinhe e se deite em seu interior.

Vemos, por um longo tempo, uma sucessão de pessoas que atravessam o palco e somem nas coxias, saltitando como Chapéuzinho Vermelho ou Pedrinho e Narizinho. Diferentes padrões de entradas e saídas, de quebras e repetições, criam um ritmo circular e hipnótico. É quase uma história de dormir onde os personagens têm que atravessar três vales e responder três perguntas para ganhar três chaves que irão abrir três portas que… Aquelas pessoas estão em trânsito, entre acontecimentos, entre lugares diferentes. O que vemos é apenas a passagem, não a chegada. E por trás das árvores há razões e desejos que justificam aquelas deambulações, provocam fugas, permitem encontros.

A duração e o minimalismo desta cena esvaziam a nossa expectativa. Aquelas caminhadas são como as paredes de um penetrável, uma trégua em nosso impulso de avançar, conquistar e civilizar. Gustavo, Lucia e seus intérpretes plantam árvores no meio de uma floresta, invisíveis a quem está de fora. Mas nós estamos lá e vemos.

A imersão no tempo estendido também marca a cena em que um casal dança em um canto, despretensiosamente. Aos poucos seus movimentos crescem, ouvimos o som de uma batida eletrônica. Outras pessoas também começam a dançar, e o palco escurece até se transformar numa rave com vultos iluminados por luzes piscantes e música num volume estonteante. É uma cena longa: há tempo suficiente para percebermos sua extensão, seu propósito. Algumas pessoas levantam da plateia e se reúnem ao grupo que pula espasmodicamente. Apenas assistir a cena, aqui, parece fazer tão pouco sentido como ver um “Parangolé” em um museu, sem o corpo que lhe dá vida. A cena é construída como algo a ser habitado e experimentado. É um convite à dança, esta dança comunal das novas tribos, celebrando o momento mesmo nessa época em que o momento parece estar sempre um passo adiante ou atrás.

Um convite ainda ambíguo. Poucos ou nenhum dos espectadores (nós, que não estávamos previamente combinados) abandona a sua segura e desconfortável poltrona. Éramos como bailarinos de valsa num show de rock. Mas se sentimos medo de entrar na dança, as pessoas que dançavam não pareciam compartilhar este medo. Imaginei o que aconteceria se a plateia toda invadisse o palco para dançar. Talvez o espetáculo acabasse ali e se tornasse apenas uma celebração.

Falo em dança, mas este é um espetáculo onde há pouco daquilo que (ainda) se espera de bailarinos e coreógrafos. Ao mesmo tempo, seu tom afetivo evita o bode conceitual, aqueles experimentos áridos sustentado por trocadilhos e enciclopédias. Tudo ali é vivo, até as plantas. Tudo é orgânico, tudo está em movimento em direção a outro lugar. Até algumas das obsessões recorrentes no trabalho de Gustavo - “O almoço sobre a relva” de Manet, música indie e os gestos suspensos da fotografia – aparecem não como marca registrada, mas com a força de uma declaração de valores, de um modo de viver.

Vemos uma mulher com vestido dourado, banhada de luz, ao som de “Epilepsy is dancing” (música de Antony & The Johnsons gravada em um álbum dedicado a Kazuo Ohno). Como uma crooner distraída, alheada em si mesmo, cantarola e observa o próprio rosto em um espelho. Um rapaz se aproxima repetidas vezes, gesticula galante e desajeitadamente para chamar sua atenção, mas é dispensado e se afasta para logo retornar, incansável. Um grupo de pessoas vem do fundo do palco, gestos lentos e fluidos numa coreografia em uníssono. A cena toda é de tremenda força evocativa, como uma imagem que escorrega pela memória sem nunca se fixar. Tenho a sensação de já ter estado naquele lugar, e estar voltando agora.

Com tantas armas ao alcance da mão, e tantas manifestações para que sejam usadas nos outros, é reconfortante estar diante de uma obra tão desarmada. Uma obra sem trancas, grades ou alarmes. Mas não se trata da nostalgia do bom selvagem, da mitificação de uma juventude dourada. Em algum momento durante o espetáculo, eu percebi que a utopia é breve, mas necessária aqui e agora. Que gentileza gera gentileza. Que a violenta ocupação dos nossos territórios começa pelo olhar.

Ao sair, lamentei cada uma das poltronas vazias na plateia. Este é um lugar que dá vontade de compartilhar com o mundo. 

Alex Cassal





About Me

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Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil
Rio de Janeiro. I am a performing artist and art maker coming from dance. I love to dialogue with the historical, material and affective context we are immersed in any given situation. As art form, my work goes from multimedia stage conceptual work to convivial and open-air pieces. It strikes me the awareness and fictions arising from the sublime of daily situations, its materiality, the reference points that we cling to and build up our relation to reality and how meaning grows from this. contacts: gustavociriaco@gmail.com | marine@elclimamola.com

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